- Pare!
Há de se atentar que era uma fria noite
de julho. Noite de quietude, em geral. Mas não para Anna. Ela, garotinha de
olhos grandes, profundos, com olheiras que as bochechas faziam questão de mostrar
destaque. A respiração, antes taciturna, o olhar, antes turvo, agora abria
espaço para um tal inspirar e expirar ofegante; e olhadas fixas como nunca
antes fora de costume.
Anna corria. E corria muito, aliás. Só
não sabia ainda o porquê. Não sabia nem onde estava, para falar a verdade.
Apenas sabia que era noite e estava frio. Parou de correr. Diante de uma ponte
muito bem iluminava estava uma senhora de meia idade. Anna se aproxima. Chama.
Nenhuma resposta.
Fica em frente à senhorinha que tinha os
olhos claros, iluminados, a pele um pouco judiada pelo tempo, e com algum grau
de surdez, julgou Anna. Tentou falar com ela mais uma vez; agora mais alto e
nada de resposta. Desistiu e se afastou. De repente se aproximou dela um
garotinho de nos médios oito anos de idade, chamando-a de avó. “Que tolinho”,
pensou Anna, por ele chamar ela, já que não ouviria.
No entanto, bastou o garotinho chamá-la
pela segunda vez, ela virou, estendeu os braços para abraçá-lo, e vieram na
direção de Anna conversando. Ela, sem entender muito, resolveu chamá-los e
perguntar por que a senhora a ignorou quando chamada. Mais uma vez, nenhuma
resposta. Nenhum dos dois. Passaram então neto e avó conversando bem ao lado de
Anna e sequer os olhares se encontraram. Era como se ela não estivesse lá.
Novamente, sem entender o motivo, saiu
em disparada, correndo muito, ofegante. Atravessou a ponte. Passou por uma
pracinha escura, parou numa esquina. Curvou-se, pôs as mãos nos joelhos para
tomar fôlego. Olhou em volta, ninguém. “Será que está muito tarde?” – pensou. Olhou
para o pulso esquerdo, nada do seu relógio. Conferiu os bolsos, sem celular.
Quando menos esperava, um gatinho
vira-lata saiu de uma rua correndo muito, como que espantado. Anna chamou-o.
Gostava de gatos. E outra vez, nenhum reflexo do seu chamado. Seu coração
acelerado, ainda um pouco ofegante e com frio. “Onde estava?”, “Para onde fora
todo mundo?”, “Por que não a ouviam?”, passaram a ser os lamentos pensados de
Anna.
Como num súbito, da mesma rua que saíra
o gatinho correndo, apareceram três moleques. Falando alto e gesticulando
bastante. Um deles sem camisa, os outros dois com celulares na mão, Anna pensou
em solicitar-lhes a hora. No entanto se deu conta que estava sozinha e nem
sabia onde estava. Lembrou dos conselhos sobre não falar com estranhos, ainda
mais num lugar estranho. Ficou quieta, esperando passarem.
Pararam, começaram a discutir, mas Anna
não entendeu o motivo. Apenas observou. Surgiu um revolver no meio da confusão.
Olhou em volta, ninguém. Dessa vez ela desejava que realmente não a vissem. E
seu desejo se fez. Um dos moleques, que estava sem camisa, correu de perto
deles, e veio em direção à esquina. Anna se virou um pouco, como que se
preparando pra correr. Deu as costas e correu.
Eles agora falavam ainda mais alto e, de
repente um deles, o que estava com a arma em mãos, gritou “-Pare!” e Anna
parou. Trêmula, suando frio, com as mãos geladas de medo e o coração em
corrida. Não se virou, apenas gritou “-Por favor, não façam nada comigo. Quero
apenas voltar pra casa!” Mas o moleque mandou outra vez alguém parar. Pelo
visto, não era Anna.
De fato, o moleque chamara apenas aquele
outro que estava sem camisa. Anna se virou um pouco pra tentar entender. Mas
ele não parou, continuou andando. Já furioso, o que estava com a arma na mão,
posicionou melhor o revólver como que buscando mira e levantou apontado para o
que continuava andando, sem olhar pra trás. Anna não conseguiu se mover. Estava
como congelada e apenas gritou.
“Não faça isso! Pelo amor de Deus, não
faça isso!” E nada de resposta mais uma vez. Anna correu de encontro ao que
estava sem camisa e pediu para que parasse de andar, mas ele não respondeu.
Sequer parou de andar. E novamente era como se Anna não estivesse ali. Chegou
perto dele, na intenção de puxá-lo e intervi-lo. Mas nada alcançou. Sua mão
parecia estar invisível. Aliás, ela parecia estar assim esta noite.
Foi mais pra perto, tentou puxá-lo mais
uma vez enquanto o outro continuava gritando em alto tom de ameaça. Correu o braço
nele e nada sentiu, nem se fez sentir. Atravessou o corpo do moleque como se
ela o observasse, mas não fosse corpo. Gritou em desespero e nada. O gatilho
estava prestes a ser puxado na mão do outro moleque nervoso; encaixado em seus
dedos.
O coração de Anna acelerou ainda mais,
não sentiu mais frio, apenas medo. Gritou até sua garganta pedir clemência num
pigarro seco. Tossiu. Pôs as mãos no ouvido pra não ouvir as ameaças do
moleque, não ouvir barulho de tiro, gritou ainda mais. Sentiu seu sangue fervilhar.
Fechou os olhos e quando já não aguentava mais, e, quando já estava sem voz,
deixou-se cair no chão. Não sentiu o chão, afundou, caiu, caiu... E, abriu os
olhos de repente!
Agora sentia onde estava e se sentia.
Sua cama quente e seus lençóis revirados. O travesseiro no chão e a garganta
intacta. Fora mais uma daquelas noites inquietantes de pesadelos. Ainda estava
meio confusa. Chamou a mãe e de imediato esta lhe respondeu, dizendo que seu
leite estava lhe esperando quentinho e com torradas no prato. Anna sorriu.
Começou a cantarolar...
Belma Andrade