quinta-feira, 9 de agosto de 2012


- Pare!

        Há de se atentar que era uma fria noite de julho. Noite de quietude, em geral. Mas não para Anna. Ela, garotinha de olhos grandes, profundos, com olheiras que as bochechas faziam questão de mostrar destaque. A respiração, antes taciturna, o olhar, antes turvo, agora abria espaço para um tal inspirar e expirar ofegante; e olhadas fixas como nunca antes fora de costume.
        Anna corria. E corria muito, aliás. Só não sabia ainda o porquê. Não sabia nem onde estava, para falar a verdade. Apenas sabia que era noite e estava frio. Parou de correr. Diante de uma ponte muito bem iluminava estava uma senhora de meia idade. Anna se aproxima. Chama. Nenhuma resposta.
        Fica em frente à senhorinha que tinha os olhos claros, iluminados, a pele um pouco judiada pelo tempo, e com algum grau de surdez, julgou Anna. Tentou falar com ela mais uma vez; agora mais alto e nada de resposta. Desistiu e se afastou. De repente se aproximou dela um garotinho de nos médios oito anos de idade, chamando-a de avó. “Que tolinho”, pensou Anna, por ele chamar ela, já que não ouviria.
        No entanto, bastou o garotinho chamá-la pela segunda vez, ela virou, estendeu os braços para abraçá-lo, e vieram na direção de Anna conversando. Ela, sem entender muito, resolveu chamá-los e perguntar por que a senhora a ignorou quando chamada. Mais uma vez, nenhuma resposta. Nenhum dos dois. Passaram então neto e avó conversando bem ao lado de Anna e sequer os olhares se encontraram. Era como se ela não estivesse lá.
        Novamente, sem entender o motivo, saiu em disparada, correndo muito, ofegante. Atravessou a ponte. Passou por uma pracinha escura, parou numa esquina. Curvou-se, pôs as mãos nos joelhos para tomar fôlego. Olhou em volta, ninguém. “Será que está muito tarde?” – pensou. Olhou para o pulso esquerdo, nada do seu relógio. Conferiu os bolsos, sem celular.
        Quando menos esperava, um gatinho vira-lata saiu de uma rua correndo muito, como que espantado. Anna chamou-o. Gostava de gatos. E outra vez, nenhum reflexo do seu chamado. Seu coração acelerado, ainda um pouco ofegante e com frio. “Onde estava?”, “Para onde fora todo mundo?”, “Por que não a ouviam?”, passaram a ser os lamentos pensados de Anna.
        Como num súbito, da mesma rua que saíra o gatinho correndo, apareceram três moleques. Falando alto e gesticulando bastante. Um deles sem camisa, os outros dois com celulares na mão, Anna pensou em solicitar-lhes a hora. No entanto se deu conta que estava sozinha e nem sabia onde estava. Lembrou dos conselhos sobre não falar com estranhos, ainda mais num lugar estranho. Ficou quieta, esperando passarem.
        Pararam, começaram a discutir, mas Anna não entendeu o motivo. Apenas observou. Surgiu um revolver no meio da confusão. Olhou em volta, ninguém. Dessa vez ela desejava que realmente não a vissem. E seu desejo se fez. Um dos moleques, que estava sem camisa, correu de perto deles, e veio em direção à esquina. Anna se virou um pouco, como que se preparando pra correr. Deu as costas e correu.
        Eles agora falavam ainda mais alto e, de repente um deles, o que estava com a arma em mãos, gritou “-Pare!” e Anna parou. Trêmula, suando frio, com as mãos geladas de medo e o coração em corrida. Não se virou, apenas gritou “-Por favor, não façam nada comigo. Quero apenas voltar pra casa!” Mas o moleque mandou outra vez alguém parar. Pelo visto, não era Anna.
        De fato, o moleque chamara apenas aquele outro que estava sem camisa. Anna se virou um pouco pra tentar entender. Mas ele não parou, continuou andando. Já furioso, o que estava com a arma na mão, posicionou melhor o revólver como que buscando mira e levantou apontado para o que continuava andando, sem olhar pra trás. Anna não conseguiu se mover. Estava como congelada e apenas gritou.
        “Não faça isso! Pelo amor de Deus, não faça isso!” E nada de resposta mais uma vez. Anna correu de encontro ao que estava sem camisa e pediu para que parasse de andar, mas ele não respondeu. Sequer parou de andar. E novamente era como se Anna não estivesse ali. Chegou perto dele, na intenção de puxá-lo e intervi-lo. Mas nada alcançou. Sua mão parecia estar invisível. Aliás, ela parecia estar assim esta noite.
        Foi mais pra perto, tentou puxá-lo mais uma vez enquanto o outro continuava gritando em alto tom de ameaça. Correu o braço nele e nada sentiu, nem se fez sentir. Atravessou o corpo do moleque como se ela o observasse, mas não fosse corpo. Gritou em desespero e nada. O gatilho estava prestes a ser puxado na mão do outro moleque nervoso; encaixado em seus dedos.
        O coração de Anna acelerou ainda mais, não sentiu mais frio, apenas medo. Gritou até sua garganta pedir clemência num pigarro seco. Tossiu. Pôs as mãos no ouvido pra não ouvir as ameaças do moleque, não ouvir barulho de tiro, gritou ainda mais. Sentiu seu sangue fervilhar. Fechou os olhos e quando já não aguentava mais, e, quando já estava sem voz, deixou-se cair no chão. Não sentiu o chão, afundou, caiu, caiu... E, abriu os olhos de repente!
        Agora sentia onde estava e se sentia. Sua cama quente e seus lençóis revirados. O travesseiro no chão e a garganta intacta. Fora mais uma daquelas noites inquietantes de pesadelos. Ainda estava meio confusa. Chamou a mãe e de imediato esta lhe respondeu, dizendo que seu leite estava lhe esperando quentinho e com torradas no prato. Anna sorriu. Começou a cantarolar... 

Belma Andrade

terça-feira, 7 de agosto de 2012


É... Não tem jeito.
Não paro na primeira esquina.
Não desisto desse correr dilacerante.
Se soubesse do gosto que vem
Se amargo ou meloso,
Só seria manhoso todo saber...
Não desisto. Não me tentes.
Suspiro com a noite
Que vira do avesso e traz
O raiar mais saboroso
De uma nova prosa, novo verso,
Conto novo de ser contado.
Se não me der chances,
Quem mais dar-me-á?
E se oferecerem, nego.
Traço esse trato torto.
Uno o bater acelerado de outrem
Junto ao meu por ser teimoso.
Sou crente, sou cética, sou eu.
Sou querer, mesmo sem querer.
E ainda tombando e me rebelando,
Não freio uma corrida,
Não estaciono e me direciono...
Deixo apenas ir, apenas correr...
Não de modo avulso, deixado...
Mas de modo meu, levado. 

Belma Andrade 

quinta-feira, 2 de agosto de 2012




A fumaça densa
Subindo da minha xícara,
E passando
Por entre meus olhos
Assemelhando-se
Às nuvens ralas
Desfilando em frente
Da pudica sem pudor
Mais brilhosa
E em polvorosa
De tantas as noites...
As lentes
Dos meus óculos
Ofuscam-se.
E mais uma vez
Comparo o luar
Que está hoje desfocado,
Um pouco arado,
Mas trazendo um calor
Similar a esse golado
Agora até à borra
Do meu último grão
Da estrela ao lado
De um pedaço de chão
Do luar torrado...

Belma Andrade